domingo, 24 de agosto de 2014

NO PRIMEIRO CENTENÁRIO DA GRANDE GUERRA (1914-1918)

UMA ENFERMEIRA NA PRIMEIRA GRANDE GUERRA - ENTREVISTA



In: Revista "Mais" n.º 6 de 21 de Maio de 1982 (Colecção particular)

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

segunda-feira, 19 de maio de 2014

NO 1.º CENTENÁRIO DA GRANDE GUERRA (1914-1918)

UMA PÁGINA ESQUECIDA 
DA 
GUERRA EM MOÇAMBIQUE


Como um furacão assolador, as vitoriosas tropas de von Lettow invadiram e talaram, na Primavera de 1918, todo o Norte de Moçambique, numa audaciosa investida sobre Quelimane.

Os nossos aliados sul-africanos, a pretexto de nos auxiliar, colaboravam na invasão, com a mais insolente arrogância, por onde quer que passassem, era o seu primeiro cuidado captarem a confiança indígena, para depois o indispor contra nós, minar pela base todo o nossos prestígio e soberania aos olhos crédulos das populações autóctones. Nessas “contradanças” de marchas e retiradas, duas companhias sul-africanas chegaram em fins de Junho a Nametil e acamparam perto. O Tenente Humberto de Ataíde, como comandante do posto e cumprindo directrizes recebidas, apresentou-se ao comandante da coluna e ficou às suas ordens.

O Tenente Humberto de Ataíde (à nossa esquerda) aquando em Angola com o
Alferes Aragão, heróico comandante dos Dragões em Naulila
(colecção particular)



Chegara-lhe, então, a sua hora da fatalidade! Colhido pelas engrenagens dessa tenebrosa máquina de cobiça e de traição política sul-africana, o pobre e ingénuo herói estava de antemão condenado a não mais se desenvencilhar dela, senão bem triturado, com o coração e a alma sangrando agonias.

As hostilidades entre o major sul-africano e o oficial português romperam daí a dias…Começou por uma nota em africânder, denunciando como suspeitos de entendimentos com o inimigo, todos ou quase todos os sipaios da guarnição do posto. Calando a sua revolta pelo grosseiro embuste, não tendo maneira de contrabater a infâmia, o Ataíde cedeu. Dadas as circunstâncias, as ordens recebidas, a natureza da suspeição, proceder de outro modo seria provocar desde logo o conflito de jurisdições que se lhe afigurava grave.

Consentiu, pois, em que fossem desarmados os seus soldados indígenas e ficou apenas com meia dúzia de sipaios, mal armados e um Sargento europeu.

Entretanto, havia informações de que os alemães avançavam por este Distrito, devendo forçosamente passar pelo posto de Nametil. Os sul-africanos comunicaram ao Tenente Ataíde que tomasse as suas precauções para a contingência duma vitória alemã no inevitável combate que se devia travar. Desnecessária advertência, pois que essa torpe milícia sul-africana até então para nada mais servia senão para ser periodicamente zupada e escarnecida pelos aguerridos askaris de von Lettow-Vorbeck! O Tenente Ataíde tomou pois as suas precauções que tão-somente consistiam em evitar que os armazéns do posto, abarrotados de víveres, viessem a cair nas mãos dos alemães vitoriosos.

Sipaios (colecção particular)


Dois dias depois, um intenso e longo tiroteio para os lados do bivaque sul-africano põe-no de sobreaviso. Devia ser o anunciado combate, Ataíde passou a noite ao relento, com a sua gente, e disposto a todas as eventualidades.

Acabado o tiroteio tratou logo de se informar, mas os sul-africanos tinham debandado, levantando o seu bivaque, sem deixar rasto, nem notícia. Dos alemães também não havia notícias. Para onde teriam ido? Ter-se-iam internado no mato, como era a sua táctica, para caírem de surpresa, pela madrugada, sobre o posto alemão? Nada se sabia…

Ignorante de tudo, desajudado de todos, sem soldados para defender o posto, nem elementos para apreciar a situação, então, a fim de evitar um mal maior, cumpriu as ordens anteriormente recebidas – por fogo aos armazéns!

Seguidamente, com a sua magra escolta, marchou ao acaso até encontrar esses tredos aliados. E o seu pasmo não conheceu limites, ao vir topá-los, muito tranquilos, bivacados no posto de Mùatúa, a algumas léguas à rectaguarda de Nametil.
- «Que não! Não tinha havido nada!», foi a insólita explicação que obteve. «O tiroteio que se ouvira, fora simples ensaio de metralhadoras. E que ele, Tenente Ataíde, não devia ter mandado incendiar os depósitos…».

Tão alarvemente posto em cheque, por essa reles tropa africânder, a sua honra de militar e de português, não lhe sofreu mais o ânimo ouvir-lhes as insolências. Só lhe restava uma solução – um inquérito, um concelho-de-guerra, a ilibação total! Nesse sentido remeteu logo um extenso relatório ao comandante militar português da região, o então Major José Cabral, seu devotado amigo e que mais tarde foi Governador-geral de Moçambique.

Não obteve resposta!

Tropa de África (colecção particular)


Debalde mandou segunda, terceira nota e nada! Por fim num telegrama angustioso, pedia urgentemente uma palavra, uma sanção, fosse o que fosse….e a resposta nunca chegou!

Convencido, enfim, de que cometera um erro crasso, tão facilmente confundível com a cobardia, que nem desse amigo certo merecia uma palavra boa, um gesto de defesa, um apelo, tornou-se juiz da própria causa. E foi inexorável consigo mesmo, o ingénuo, o romântico, o impoluto herói!

A miserável cabala dessa tropa do sul de África tinha sortido os seus efeitos. As ordens recebidas lá de baixo, da União, foram cumpridas à risca. Porque veio a saber-se depois, que nenhuma das notas, dos telegramas, dos angustiosos apelos do Tenente Humberto de Ataíde ao seu comandante e amigo José Cabral, tinham chegado ao seu destino. Os miseráveis, por cálculo ou por desdém, tinham-nos cassado todos, interceptando todos, retido todos entre as suas papeladas.

Foi apenas isto, esta pequenina torpeza, que ele ignorou sempre, de que ele nem suspeitou nunca, o que levou a condenar-se e a justiçar-se por suas mãos.

Só quem nunca se viu ainda em África, sozinho consigo mesmo, nesse lôbrego e hostil silêncio do mato africano poderá acusar esse bravo rapaz de fraqueza de ânimo nesse minuto supremo. Demais ele andava adoentado, convalescente ainda de uma crise de febres. E não há nada mais depressivo que um longo estágio de vida sedentária em África.

Num relatório do Sargento que até ao fim lealíssimo, o acompanhou sempre, mas com quem ele, decerto, por disciplina e orgulho nunca entraria em confidências, disse:
- «No dia 4 de Agosto, desesperado de obter qualquer resposta do Sr. Major Cabral, o Sr. Tenente Ataíde fechou-se no seu quarto a escrever cartas e a rasgar papéis. Às três horas da tarde, tendo perguntado ainda se tinha vindo algum correio para ele, como nada houvesse de facto, ele tornou a fechar-se no quarto e pouco depois desfechou a sua pistola no coração”. As duas cartas que deixou, eram uma para a sua mãe e a outra para o Major Cabral

Perante o exemplo dessa vida e a tremenda lição dessa morte, não será lícito afirmar-se que o precoce fim do Tenente Humberto de Ataíde foi alguma coisa mais que o simples óbito dum oficial em terras de África? Não teria morrido com ele o velho brio português? E não nos assiste ainda o direito de fazer outra pergunta?
- O que haveria a esperar deste honrado e heróico moço? De que prodígios não seria ele capaz, para maior glória do seu tempo e da sua Pátria?
                                                         Carlos Selvagem
                                                     4 de Agosto de 1928



Uma sentinela (colecção particular)



Nota:
Sem comentários, porque os não precisa, transcrevo uma carta, a última. Esta devia andar decorada por todos aqueles que em Portugal vestindo uma Farda do Exército, têm ainda da Honra Militar uma noção ambígua e difusa

« Mùatúa, 4 de Agosto de 1918

Meu Exmo. Amigo

Esta carta é-lhe devida por duas razões: porque V. Ex.ª faz favor 

de me dispensar a sua amizade e porque lhe devo pedir perdão de 

não ter sabido corresponder até ao fim à confiança que em mim 

depositou.


Pratiquei em erro. Erro tanto mais grave quanto ele pode ter

consequências gravíssimas sob o aspecto da nossa soberania aqui 

–mais aqui declaro a V. Ex.ª – no momento em que o pratiquei 

estava absolutamente convencido de que tal devia fazer. Sou uma 

vítima dos acontecimentos e não um cobarde vulgar. Nunca menti 

na minha vida em coisas que a minha dignidade pessoal estivesse

 envolvida. Tudo quanto fiz, fi-lo de acordo com a minha

 consciência e não precisava, pois, de para me justificar, recorrer 

a  embustes e a falsidades. Nesta ocasião suprema, muito menos

 vou faltar à verdade, que todo o homem de honra deve colocar 

acima de tudo. Declaro a V. Exa. Que na ocasião em que fiz o 

desgraçado acto, que hoje me leva ao aniquilamento, eu, e julgo

 que comigo, quantos me acompanhavam, estávamos

 absolutamente convencidos de que se praticava a única solução

 que as circunstâncias reclamavam. Fui infeliz, mas não fui 

cobarde. Durante a minha vida de oficial, várias vezes afrontei a 

morte, em casos bem mais terríveis do que em Nametil e nunca

 dela tive medo. Hoje mesmo que findo esta, vou meter na cabeça 

o ponto final da minha vida. Julgo que dou uma prova mais de

que se saí de Nametil o não fiz por receio de morrer. Tendo

obrigação de morrer no meu posto, eu não me julguei com o

direito de sacrificar impiedosamente e ingloriamente os que me

 acompanhavam e daí a razão do meu acto.

Um inquérito bem ordenado, feito com amor e zelo mostrará, que

 sou uma vítima da confusão desgraçada em que os ingleses nos

 colocaram.

Se em minha consciência, fiz o que devia fazer, nem por isso deixo

 de compreender que me enganei e pratiquei uma grave falta.

 Faltas desta natureza – só uma coisa as limpa e redime. O sangue 

– E por isso me mato.

Resta-me pedir, que aos que comigo me acompanhavam nada seja

 feito. Assumo a completa e inteira responsabilidade de tudo.

 Para vítimas basto eu!

Adeus, meu caro amigo, abracem em meu nome, quantos amigos

 temos – o Bessa, o João de Meneses, o Sarmento Pimentel, o 

MacBride, o Cunha Leal e tantos outros cujos nomes me ocorrem 

ao coração, a este coração a que eu desejava estreitar e que 

dentro em pouco estará frio e inerte. Mais uma vez perdão e o 

último abraço do seu companheiro de ideais.
                                                                                      
                                                                    Humberto Ataíde



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